sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Disputa entre Globo e Record


Nos últimos doze anos, Edir Macedo manteve-se longe dos holofotes. Líder da Igreja Universal do Reino de Deus e dono da Rede Record, ele se devotou a suas atividades religiosas e empresariais da maneira mais discreta possível desde que foi atingido por dois escândalos, em 1995. Um deles foi o “chute na santa”, a série de pontapés desferida em uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, pelo bispo Sérgio von Helde, num programa de sua emissora. O outro, a divulgação de um vídeo em que ensinava aos bispos de sua igreja, com palavras chulas, como arrecadar dinheiro dos fiéis. Mas agora Edir Macedo está de volta à cena. E com barulho. No próximo dia 15, lança uma biografia em que dá sua versão sobre as polêmicas que cercam sua vida. Há dez dias, ressurgiu no horário nobre da televisão para lançar o Record News, o primeiro canal inteiramente noticioso da TV aberta brasileira. Diante do presidente Lula e de autoridades como o governador de São Paulo, José Serra, ele não se limitou a celebrar o novo empreendimento.

Fez um discurso agressivo, referindo-se à líder de audiência do país, a Rede Globo, sem citá-la nominalmente: “Fomos injustiçados por muitos anos por um grupo de comunicação que tinha e mantém o monopólio da notícia no Brasil. Daí nosso desejo de dar fim a esse monopólio”. Na semana passada, a Record voltou à carga – por meio de um editorial em seu principal noticiário, acusou a rival de ter feito gestões para impedir a inauguração da Record News. A saída do casulo e o ânimo de briga têm razão de ser. Além do novo canal de notícias, Macedo celebra feitos consideráveis da Rede Record, a jóia central de seu império de comunicações. Em agosto, a emissora tornou-se a segunda rede brasileira em ibope, superando o SBT em todas as faixas de horário. Além disso, de três anos para cá a Record dobrou seu faturamento publicitário – que já supera a marca de 1 bilhão de reais.

Quem olha os números de audiência nestas páginas constata que ainda existe uma enorme distância entre a Globo e suas competidoras. A Globo ostenta 21 pontos de ibope na média diária – o triplo da medição que a Record acaba de alcançar. Mas essa liderança mais do que confortável não evitou que a emissora carioca reagisse aos ataques de Macedo e da Record nos últimos dias. Ela respondeu no mesmo tom ao editorial do Jornal da Record, afirmando numa nota que agressões desse tipo eram de esperar vindas de “um grupo que lucra com a manipulação da fé religiosa”. Trata-se de uma resposta que aponta as circunstâncias nebulosas que alavancaram a Record, mas não há dúvida de que por trás dela existe outro fato: o desafio imposto pelo canal do bispo Macedo é o mais duro que a Globo já enfrentou. O SBT nunca representou o mesmo tipo de ameaça: 10 pontos de audiência média sempre foram suficientes para que Silvio Santos mantivesse uma estrutura empresarial que lhe convinha. Não é assim com Edir Macedo. Ele é um homem muito mais ambicioso do que o dono do Baú da Felicidade – e a Record tem um papel central na realização de suas ambições. Ao mesmo tempo, a Igreja Universal oferece à Record recursos para prosperar: 300 milhões de reais por ano, por meio da compra de horários na programação. Esse dinheiro, proveniente do dízimo pago espontaneamente pelos fiéis da igreja, equivale a um terço de tudo o que a emissora arrecada no mercado publicitário. Trata-se de uma vantagem competitiva que nenhuma outra emissora desfruta.

Dizer que a Record só avança por causa do dinheiro da Universal é enxergar apenas uma parte do fenômeno. Sua arrancada deveu-se a uma mudança de filosofia ocorrida em 2004. A emissora já passara por duas fases. Da compra por Edir Macedo, em 1989, até o triste episódio do “chute na santa”, o televangelismo dominou a programação. Na fase seguinte, a Record assumiu um perfil popularesco, em que o sensacionalismo do Cidade Alerta e do Programa do Ratinho era a grande atração. A guinada que agora começa a dar frutos foi desfechada há três anos. Por sugestão do então recém-contratado diretor comercial Walter Zagari, a rede optou por fazer uma operação muito comum nas televisões de todo o mundo. Decidiu-se “clonar” a programação da Globo e ter o famoso “padrão de qualidade” da emissora do Jardim Botânico como a meta a ser atingida.

A Record adotou um conceito de programação semelhante ao da concorrente. Investiu pesado na criação de um telejornal com o objetivo de emular o Jornal Nacional. A emissora do bispo despejou 300 milhões de reais na criação de uma indústria de novelas própria. Estava armado o bote. Antes que ele produzisse efeitos sensíveis no ibope, a Globo percebeu que havia uma ameaça nova no ar, algo que oferecia muito mais perigo do que o simpático mas pouco inventivo e acomodado SBT. Em três anos, a Record tirou sessenta jornalistas da Globo. Na área de teledramaturgia, a ousadia foi sinalizada pela compra dos antigos estúdios do humorista Renato Aragão, no Rio de Janeiro. A Record pagou 15 milhões de reais pelas instalações.

O RecNov, nome do complexo, simboliza essa fase exuberante da Record. Quando foi comprado, ele contava apenas com três galpões modestos. Hoje tem oito que, em tecnologia, pouco ficam a dever aos da Globo. O plano é dobrar esse número nos próximos anos. Os recursos técnicos de iluminação e de efeitos especiais de última geração logo começaram a aparecer na tela da Record. A atual novela das 10 da emissora, Caminhos do Coração, é onde isso aparece de forma mais clara. As cenas de ação e as crianças com superpoderes da trama são bastante convincentes. A Record inflacionou o mercado de técnicos e operadores de câmera. Muitos deles receberam ofertas salariais três vezes superiores ao que ganhavam na Globo. Atores, atrizes e diretores globais passaram a ser assediados com propostas financeiras tentadoras e a promessa de manutenção do padrão estético a que foram acostumados na emissora dos Marinho.

O acirramento da competição na televisão apenas raramente leva a melhorias na qualidade da programação. A atual investida da Record parece ser um desses raros casos. A emissora se propõe igualar e até superar, como dizem seus mais animados executivos, o padrão Globo de qualidade. Não só nas novelas. A mesma filosofia deve inspirar a área de variedades com aposta em programas populares, mas que não apelem para o grotesco. O objetivo é atrair um público qualificado, com poder de compra e que justifique cobrar caro pelos comerciais. O programa matinal Hoje em Dia mistura jornalismo e entretenimento e pode ser tomado como um exemplo dessa tentativa da Record. Decalcado de um formato da rede americana ABC, Good Morning America, o programa tem conseguido juntar diante da tela um porcentual de espectadores das classes A e B bastante expressivo para o horário. Nele se projetou a modelo Ana Hickmann, que tem batido em audiência os programas das loiras Ana Maria Braga e Xuxa – razão pela qual a Globo já estuda formas de revigorar o horário. Decidida a se profissionalizar, a Record não mexe uma palha atualmente sem fazer pesquisas de opinião. O Hoje em Dia foi feito sob medida para atender a um público adulto, em um horário em que Globo e SBT oferecem apenas opções para a criançada.

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